sexta-feira, 4 de maio de 2018

O ninho

Caio fora o último com quem eu tive a chance e a disposição para conversar sobre James, pois depois dele nada mais poderia ser dito sem parecer ínfimo, genérico ou sem vida. Mas, não por acaso, me sinto obrigado a começar nossa história por suas palavras, tão entrelaçadas na história de tantos outros, mas sob seu ponto de vista único, abstrato, melancólico e inconsolável.

"Tudo começou pelo desejo do fim", ele me disse. "James apareceu em um momento da minha vida que não poderia ter sido mais ou menos preciso, isso para não dizer exato". Seria hipocrisia eu dizer que seus olhos marejavam, pois o choro desaguava, incessante, desde muito antes de minha primeira ligação. Talvez desde junho. Não qualquer mês de junho, mas daquele mês junho.

"Só que nos últimos tempos ele parecia farto de não compreender questões existenciais da vida, do universo e da sua própria imaginação, questões que nem mesmo podem ser compreendidas. Eu te dizer pode fazê-lo pensar que James não estava bem, mas era exatamente o contrário: ele parecia inabalável, mais presente do que nunca. Mas era como se... ele já não pertencesse mais a esse lugar". Ele dizia tudo num tom espontaneamente ensaiado, como quando alguém revisita tantas vezes os próprios pensamentos que ao verbalizá-los soa inexplicavelmente convicto de suas verdades. O que me fez questionar.

- Mas você e ele, vocês estavam bem? - pergunto mais com o olhar do que com palavras.

- A gente se amava muito, se é isso o que você está me perguntando. - ele, por sua vez, me respondia mais com silêncios do que com palavras. Assenti com a cabeça, indicando que os quase 20 segundos de pausa já eram suficientes para prosseguir.

"E James nunca disse que deixou de me amar. Nunca. Mas foi isso que eu pensei quando ele me deixou sem nunca nem mesmo olhar para trás, fosse para uma ligação, uma mensagem. Um 'estou bem' que fosse."

Em suas palavras eu podia sentir a mágoa represada de todos os aniversários de casamento, de todo dia dos namorados, e de cada novo ano de vida iniciado e não comemorado ao lado de James. Mas sentia também a eterna esperança muda dele regressar, já quase soterrada pelo tempo, mas que nunca iria deixar de existir.

As lágrimas escorriam por seu rosto gotas de chuva no vidro da janela em tarde chuvosa. Mas naquela tarde não chovia, muito pelo contrário: era verão, e o vento quente adentrava a pelas portas e janelas do sítio de seus pais onde ele passava as férias. Foi difícil convence-lo a me receber. Exatos 2 anos após minha última tentativa de contato, dessa vez por e-mail para soar menos invasivo do que as recentes ligações. Olhando naquele momento para seu rosto úmido, me perguntei se ele se arrependia de estar me recebido.

- Fique calmo, eu não estou arrependido de você ter vindo, se é o que está achando. Só estou chorando porque é bom lembrar.

Foram essas precisamente as palavras: "Só estou chorando porque é bom lembrar". Nem sei se fazem assim tanto sentido para você que lê agora, mas saiba também que naquele momento o sol coincidentemente brilhou mais forte, inundou a sala, tingiu as paredes e mobília, e aqueceu cada parte do meu corpo em que pode tocar. A luz semicerrou meus olhos, e de repente em meu rosto também escorriam lágrimas.

Tentei dizer algo, mas as palavras se embolaram. "Eu sei", Caio me disse. "Não se preocupe."

Naquele momento, eu soube que aquele seria o último depoimento que eu precisaria colher para encerrar esse livro. Nossos olhos se encontraram e havia um oceano de não dizeres. Peguei o gravador sobre a mesa e desliguei-o, pois eu entendia que o que estava para conversado ali deveria ser reproduzido apenas com com o coração e com a intuição.

"Eu também estava te esperando."

O desejo de voar

James nunca soube ao certo de onde exatamente vinha o seu desejo pela queda. E a queda, em seu ponto de vista, não era algo negativo, mas sim uma visão romântica do cair - como o vislumbrar de uma janela através de outra janela que dava para outra janela do infinito. A queda do ego. A queda do apego a conquista. A queda de falsas convicções, de falsos medos e falsos desejos. A queda do próprio medo de cair.

Não havia palavra alguma que o fizesse recuar quando tomou a sua decisão. E, após tomada, tudo o que restava era decidir o momento exato de decidir, estabelecer um prazo para sua inevitável partida. E decidiu. Não sem sofrer ou sem criar sofrimento, mas fato é que decidiu.

Desejava o eterno com a paixão efêmera de quem recomeça a destruição para então remodelar o sonho que mais tarde destruiria para reconstruir. Repensava os detalhes com a lógica incessante de quem desenha sob tela e não se contenta com traço torto, mas endireita todo um pensar sem jamais - jamais - restruturar o erro que sozinho torna perfeita a sua obra e forma intrinseca de se expressar. Desejava abrir os braços e tocar as nuvens na mesma velocidade com que podia imaginar tal feito. Desejava nunca regressar, mas regressava no desejo de não desejar. E de alma e coração, desejava criar asas e voar.

Você deve achar genérica e impressionista essa forma de escrita redundante e sem ponto de partida ou fim. Imprecisa, mas é assim que essa história será contada, pois, após muitos encontros e desencontros, é exatamente isso que (não sem equívocos) se pode concluir: não houve fim ou começo em sua jornada. Depois de tudo, se eu pudesse dizer algo sobre ele, ou até para ele, seria “James, você estremece e ressona em cada frase daqueles cuja sua presença encontrou e desencontrou.”

Desencontro, palavra ingrata. Não houve encontro maior do que aquele que ele mesmo, e por si só, buscava - e talvez tenha encontrado. Todo o resto, é julgamento. E sem base.

Essa história é sobre aqueles que ficaram em sua partida, que se confunde ao todo com sua chegada. Sobre seu começo, que ciclicamente se renova em seu eterno fim, ou talvez perfeitamente o contrário: seu fim, que ciclicamente se renova em seu eterno recomeço. É sobre momentos doce-amargos, e ideias e pensares inacabados, perfeitos em sua arte de não se terminar. É também sobre aquela frase não pronunciada, mas eternizada. E sobre aquela foto nunca revelada, mas registrada. E até sobre o eterno deslumbre frente a tudo, tudo o que na verdade é nada.

Corajosos aqueles que se aventurarem nessa história, que se encerra já em seu começo, e começa já em seu infindável fim. Dói lembrar, e mais por se reconhecer o ponto da dor do que pela dor em si. Afinal, dor por dor não dói.

Mas você... você vem?